1. O discurso de Trump oficializou e institucionalizou o apocalipse. Se havia dúvida que a gente estava vivendo em um momento marcado por destruição, crise climática, crise civilizatória e de apologia à morte, ela se deu por encerrada. A verdade é que o capitalismo após a vitória da guerra fria é sinônimo de um estado pós-civilizatório. Se antes, para a direita combater as políticas “progressistas” de capitalismo verde, inclusão da diferença e diversidade cultural, se utilizava doses de malabarismo discursivo, agora não é mais necessário. Apoiado pelos bilionários do vale do silício, está decretada a ditadura algorítmica dos EUA sobre o mundo ocidental e suas neocolônias.
2. No momento que é oficializado o apocalipse, também nos é indicado uma outra possibilidade, algo que já vem sendo repetido há muito tempo pelos pequenos setores revolucionários da sociedade: É impossível viver neste mundo e acreditar que a governabilidade a partir da democracia burguesa vai funcionar. É impossível crer que existe um aspecto da política que seja de bom mocismo. Que seja baseado em valores de paz genérica e outras palavras vazias que o campo progressista e os maiores setores de uma suposta esquerda tentam nos enrolar. Então, Trump decreta o fim da social-democracia.
3. Isso pode abrir um flanco muito importante que é o fortalecimento das forças revolucionárias ao redor do mundo em resposta à barbárie. Uma teoria, muito discutida no início dos anos 2000, mas também muito complicada, é a ideia do aceleracionismo. O “falecido” Zizek é um grande entusiasta dessa discussão. Pedagogicamente, haveria o aceleracionismo de esquerda e o de direita. Trump, naturalmente, representa o aceleracionismo de direita, na qual, para haver saltos tecnológicos, é preciso radicalizar a destruição do mundo. Enquanto o de esquerda aposta que na ação de destruição, vai se produzir o contexto de ruptura para a construção de um novo mundo. E aí, várias milhões de lições que são repetidas há muito tempo surgem, mas gosto especialmente desta: Toda ascensão do fascismo é uma revolução fracassada.
4. Desde o fim da União Soviética, tivemos vários momentos propícios para grandes transformações. A esquerda assumiu o poder ao redor do mundo e teve a oportunidade de fazer grandes transformações sociais, e não a fez. E todos esses momentos construíram as pontes e estradas da ascensão do fascismo.
5. Poderíamos afirmar que chegou uma nova era dos extremos, pensando em Hobsbawm. Porém, se a social-democracia foi morta, levou-se junto a Europa como centro ideológico. Se Trump representa o desespero do declínio do protagonismo econômico e cultural dos EUA na conjuntura mundial. Também não é uma alternativa apostar em uma romantizada China comunista e muito menos numa Rússia anti-imperialista ocidental.
6. O neo-stalinismo cresce e atrai justamente por ser um ambiente que reproduz dinâmicas de poder mais próximas do nosso cotidiano. Ou seja, é um ambiente seguro para se performar o aspecto revolucionário. Por causa disso se dá tão bem no mundo digital, na qual, os algoritmos estimulam posturas hierárquicas baseadas em poder e status. Por outro lado, a agenda libertária não conseguiu criar uma nova cultura política. Os “cancelamentos” de diversas pessoas “progressistas” mostram um caráter realista do viver a vida. E o realismo só alimenta a extrema direita e o stalinismo. Nossa tradição pecou muito nisso. Genericamente, na perspectiva da extrema direita: “há os hipócritas progressistas, enquanto, nós [extrema direita] representamos ´como a vida é´”. E ela é destruição, sadismo, sujeição e exploração do homem sobre a natureza e sobre o homem. Enquanto, para o neo-estalinismo, é argumentado que eles carregam o “acúmulo” do socialismo real e científico. “Nós fizemos revolução, vocês não”, como se pudesse haver posse dentro da história dos comunistas… O realismo serve mais para mascarar a utopia do que construí-la.
7. A perspectiva vitoriosa nas eleições dos EUA, revela que a luta de classes é extremamente relevante e a crise do ocidente é marcada por uma questão ontológica. Nesse sentido, a antropologia pode nos proporcionar algumas lições: O antropoceno não é apenas uma era geológica marcada pela intervenção humana no planeta, mas um conceito que reflete a crise de um paradigma epistemológico e ontológico dominante. Ou seja, o modo como a modernidade ocidental construiu a separação radical entre os seres humanos e os não-humanos, especialmente a natureza, e como isso nos tem levado à destruição.
8. O antropoceno é mais do que uma simples crise ecológica; é uma crise de paradigmas. Uma crise da forma como as sociedades humanas concebem sua relação com o mundo e com os outros seres. Hoje, a luta de classes é também uma luta sobre os termos de existência no planeta terra. Está em disputa as diferentes maneiras de ser e de habitar o mundo, e essa luta revela um desacordo sobre o que é a realidade e como ela deve ser organizada. Por isso, a direita, apesar de agir em certo “realismo pragmático” do que é a vida, precisa ser sustentada pelas “fakes news” e criação de universos paralelos.
9. A questão final é: Não dá mais para ficar em cima do muro. Não dá mais para acreditar que a democracia burguesa, a democracia dentro do capitalismo, é uma opção viável de gerir o Estado. A própria ideia do Estado como algo para gerir é um problema. A transitoriedade do poder é encenada, enquanto os pilares de sua existência estão aplaudindo e fazendo gestos nazistas para a peça de celebração da morte.
10. É preciso defender o fim do Estado. É preciso uma rebelião ecossocialista. É preciso construir outro significado para a palavra democracia. É preciso se organizar para enfrentar a ditadura digital dos próximos anos. 2026 é amanhã no Brasil. Apesar das controvérsias e das críticas de alguns marxistas, o casal de antropólogos Pierre e Hélène Clastres nos oferece uma metáfora valiosa. Eles refletiram sobre os profetas do tronco linguístico Tupi-Guarani, que partiram em busca da Terra Sem Mal, simbolizando a tentativa de se afastar da concentração de poder e de abrir caminho para a ideia de um novo tipo de organização social. Esse caso deve nos inspirar a imaginar uma forma de poder que, embora raramente experimentada, poderia significar o fim da exploração do homem sobre a natureza, e consequentemente, sobre o próprio homem.
Sidarta Landarini é antropólogo
CE-RJ da Rebelião Ecossocialista
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