As últimas semanas foram marcadas por mudanças na conjuntura internacional e nacional importantes, que podem significar novas tendências do universo político para o próximo período. Em um mundo marcado por uma crise multidimensional mundial, cuja mais dramática esfera é a crise ecológica, os novos cenários políticos, econômicos e sociais tendem a repercutir de maneira superlativa.
A maior crise humanitária do século XXI segue em curso na Palestina, onde o povo em Gaza agoniza com as sucessões de investidas covardes do exército genocida de Israel. Não há uma guerra “Israel-Hamas”, mas uma ofensiva colonial e imperialista, um ataque direto e cruel a todo o povo palestino. Desde a ofensiva contra o Iraque em 2003, é a primeira vez que os Estados Unidos intervêm tão diretamente. O apoio armamentista e os milhões de dólares para Israel são fundamentais para tornar este conflito um massacre histórico e inédito de civis. A carnificina atual é facilitada pela natureza neofascista do governo Netanyahu.
Nos deparamos também com um grande crescimento de movimentos e partidos de extrema-direita na Europa, especialmente na França, Alemanha e Áustria. Embora de conjunto forças de esquerda e social-democratas tenham tido uma redução eleitoral pequena no velho continente, é evidente que estamos diante de um possível novo ciclo de crescimento do fascismo e neofascismo no mundo, na Europa e também nas Américas, com as vitórias de Milei, a persistente popularidade de Trump e a vitalidade do bolsonarismo no Brasil. Entretanto, é possível concluir que a preservação relativa de uma força eleitoral da esquerda na Europa e no mundo, a exemplo do México, relaciona-se com o impacto das mobilizações pós-crise de 2007-2008, da Primavera Árabe aos coletes amarelos franceses, da Plaza del Sol ao Black Lives Matter, e a abertura para que seja apresentada uma alternativa contra o capitalismo que não o reforce ainda mais, como o fascismo.
Em especial, a cada dia fica mais evidente que as mudanças climáticas promovem um profundo sofrimento humano, sobretudo das classes trabalhadoras e despossuídas. As lutas que expõem a crescente contradição entre o capitalismo e a preservação ecológica mobilizam cada vez mais camadas da população, até então pouco conscientes e envolvidas com nossa luta estratégica ecossocialista. Prova disso foi a imensa comoção e pressão para que o Projeto de Emenda Constitucional 03/2022, chamado de PEC das Praias, que permitiria a restrição de até 10% de acesso a praias, mais um tipo de ocupação irregular e que aprofunda riscos de tragédias climáticas, tais como vimos no Rio Grande do Sul este ano, e teve sua tramitação interrompida na Câmara dos Deputados.
Somado à luta contra a PEC das Praias, a greve das categorias da educação federal foi uma das maiores da história no Brasil, ultrapassando mais de 560 unidades paralisadas nos institutos federais e mais de 55 universidades. Uma mobilização que arrancou uma recomposição parcial dos orçamentos saqueados pelos Governos Temer, Bolsonaro e parte do Governo Dilma, além da melhora sensível das propostas indignas de reajuste salarial apresentadas por Lula. Esta greve pode ser vista como o início da reação popular contra ataques brutais que o Congresso Federal, com a aliança ou conivência do próprio governo federal, efetuou sistematicamente às classes dominadas do país nos últimos tempos. Numa janela temporal de menos de um mês, duas lutas de caráter estratégico tomaram as redes sociais e ruas em todo o país, resistindo ao avanço ultraconservador e privatista em nosso território.
É nesse contexto mundial e nacional que nas últimas semanas as ruas das grandes cidades brasileiras voltaram a receber atos de grande proporção. Milhares de pessoas, em especial mulheres, se mobilizaram em manifestações espontâneas em repúdio ao PL 1904, cuja urgência foi aprovada em mais uma manobra de Lira com o centrão e a extrema direita.
Chamado de PL da Gravidez Infantil, o projeto prevê um ataque à garantia do aborto legal para todas as meninas, mulheres e pessoas que gestam. Desde a década de 1940, o aborto é garantido no Brasil em caso de violência sexual e risco de vida à mãe. Aumentando ainda mais a sua violência, o projeto estabelecia a equiparação do aborto com o crime de homicídio, prevendo uma pena maior para a vítima do estupro do que para o estuprador. Isto causou um enorme rechaço na sociedade, especialmente pela crueldade de obrigar crianças a gestarem. A #CriançaNãoÉMãe tomou conta das redes, ruas e da imprensa, mobilizando da esquerda à direita, inclusive de setores da própria base conservadora e evangélica que organizou o projeto de lei.
É importante ressaltar que as únicas posições contra a urgência desse projeto foram registradas por PSOL e PCdoB. A liderança do governo não se posicionou sobre a urgência. O projeto tinha caminho livre para seguir a tramitação.
Tinha.
Mas a velocidade e o tamanho das mobilizações ofereceram uma oposição tão forte que o andamento do projeto na Câmara foi travado. Uma onda de rechaço se formou na opinião pública, mas o elemento decisivo para a sua eficácia foram as mobilizações feministas que tomaram as ruas. Elas identificavam com sabedoria o alvo principal da trama: Arthur Lira.
Em um contexto de sucessivos ataques propostos pela extrema direita no parlamento, a liderança das mulheres nas ruas de todo o Brasil revelou-se mais eficaz do que qualquer acordo de gabinete. Uma lição importante, pois o baixo nível de mobilização que enxergamos na atual conjuntura reflete a opção hegemônica nas esquerdas - e no governo - de apostar na pactuação por cima com as elites para atenuar os ataques da extrema direita.
Lutar vale a pena e é necessário. Isso ficou evidente na rejeição popular ao PL 1904, mas também no rechaço ao PL da privatização das praias e na greve da educação federal. Em cada um desses exemplos, a mobilização tem sido um instrumento para conter ataques e garantir melhores condições para as trabalhadoras(es).
Por esta razão, devemos trabalhar pelo reforço das lutas sociais como forma de combater a extrema direita. Essa aposta é diferente daquela que tem sido levada adiante pelo governo, mais interessado em construir uma governabilidade pactuada com as elites. Dia após dia, a burguesia deixa explícito que a maré não está para conciliação, e exige novos ataques, como a desconstitucionalização dos pisos de educação e saúde.
O que as manifestações dos últimos dias demonstraram, mais uma vez, é que romper com a paralisia imposta pela estratégia da frente amplista é fundamental para um combate consequente ao bolsonarismo e aos fundamentalistas. Façamos!
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