Chega de massacre! Extermínio não é segurança pública!
- Insurgência Reconstrução Democrática e Rebelião Ecossocialista
- 3 de nov.
- 5 min de leitura
A cena deveria chocar, mas é comemorada por amplos setores: dezenas de corpos enfileirados em praça pública, na favela Vila Cruzeiro, no complexo da Penha. Lá estão familiares, sobretudo mães, que choram pelos seus. O número de mortes varia: 119, 121, 130. A contagem parece não importar, assim como a vida de quem ali mora. No discurso do governador Cláudio Castro, a operação foi “um sucesso”: “de vítimas, só tivemos os policiais”, afirmou. Em coletiva, os responsáveis pela “megaoperação” - novo nome para a barbárie autorizada - usam de velho e poderoso discurso: gerar a total ausência de identificação pelos mortos, repetidamente chamados de “criminosos”, “terroristas” e "narcotraficantes”.
Assim, alimentado pela desumanização, o expectador pode respirar aliviado e até mesmo aprender a valorizar a violência, passando a percebê-la como útil e necessária para a resolução dos graves problemas sociais. De um lado, os bárbaros inimigos; de outro, os heróis e salvadores. É o “sacrifício da justiça no altar da segurança”, anunciava Galeano. Engano dos discursos, o Rio de Janeiro não está mais seguro depois deste massacre.
O massacre reafirma um padrão de violência que tem caracterizado a gestão de Cláudio Castro, governador responsável por quatro das cinco operações mais assassinas já realizadas no Rio de Janeiro — superando, inclusive, seus próprios recordes anteriores. Um dos destaques anunciados pelo governo foi a apreensão de 93 fuzis. Deixou de afirmar que, no Sudeste, três em cada quatro apreensões de fuzis são de calibres disponibilizados entre Colecionadores, Atiradores Esportivos e Caçadores (CACs) durante o governo Bolsonaro; assim como, convenientemente, esqueceu que as maiores apreensões de armamento pesado no Brasil foram efetuadas sem um único tiro.
Esse modelo virou combustível político para alguns governadores. Ao invés de abordar as causas profundas da violência e, mais ainda, a preponderância de suas dimensões institucional e estrutural, o padrão de guerra apenas reforça o aparato de uma política criminal seletiva, direcionando o controle repressivo violento exclusivamente para as populações periféricas, majoritariamente negras e pobres. Bem sabemos que a indústria da droga é transnacional e só existe em interdependência com os Estados. Do mesmo modo, estamos cientes que operações como essas mantêm intactas as direções do crime e apenas descarta sua mão-de-obra barata, jovens trabalhadores do tráfico facilmente substituídos no dia seguinte.
Não há a construção de uma política que efetivamente reduza a ação de grupos milicianos ou facções nos territórios. São ações que, sob o disfarce de política pública, perpetuam práticas de um extermínio sem fim. O ciclo de violência é o resultado de uma escolha deliberada do Estado por uma estratégia de confronto militarizado que ignora princípios de legalidade e o valor da vida, principalmente de vidas negras e pobres. O ciclo de produção da vida no capitalismo também se faz com a produção de vidas precárias, desumanizadas, descartáveis. A produção de morte, especialmente em realidades de capitalismo dependente, como a nossa, é imprescindível para a sanha acumuladora e centralizadora de capital.
Nas movimentações do andar de cima, a direita e a extrema-direita fazem desse massacre o palanque. Mas não nos iludamos. Não há justificativa possível para que uma política estatal supostamente voltada à proteção da população se sustente na lógica do extermínio. Segurança deveria significar preservação da vida e respeito aos direitos. O que está em jogo não é uma simples falha, mas a agudização do caráter bélico e racista do modelo de segurança pública brasileiro, em um contexto de aprofundamento da militarização das vidas.
Ameaças inauditas ainda recaem sobre a população brasileira quando tomamos em conta que não só pelo discurso, mas também pelas práticas, o endosso ao desenho orquestrado para as incursões imperialistas estadunidenses se consuma: o inimigo como o narcoterrorista - aliás, classificação adotada por Milei para classificar o PCC e o CV, e que hoje se coloca em voga pelos patriotas que servem de capacho à ação estadunidense -, que nesse momento busca legitimar o posicionamento de tropas na costa venezuelana.
Precisamos denunciar o massacre de 28 de outubro como mais uma grave manifestação da agudização do genocídio ao povo negro no Brasil. Gritar, em todos os rincões do país, em alto e bom som, que chega de chacina e da política de extermínio, mas também reivindicar e batalhar por uma segurança cidadã e popular, que rompa com a falsa Guerra às drogas, que escolhe os corpos matáveis e não mexe um milímetro em quem controla o tráfico, de fato, representado pelo poder da Faria Lima e de parte considerável do Congresso Nacional.
Cada corpo tombado é um grito que clama por vida, dignidade e memória. Não podemos naturalizar o massacre de vidas negras, pobres e faveladas, nem aceitar que o Estado siga seu projeto de morte e trate a população como inimiga. O silêncio não irá nos proteger.
Por fim, reforçamos as reivindicações apresentadas pelos movimentos negros e demais organizações, em Manifesto da Coalizão Negra por Direitos, descritas a seguir:
A imediata responsabilização civil, penal e administrativa do governador Cláudio Castro e das autoridades diretamente envolvidas na operação;
A instauração de Inquérito pela Polícia Federal para investigação dos fatos com base na Lei 10446/2002, art. 1, inciso III;
A instauração de uma investigação independente e urgente, com acompanhamento da Defensoria Pública da União, do Ministério Público Federal, da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão e de organismos internacionais de direitos humanos;
Implementação de um plano nacional de ações coordenadas e de inteligência, com foco no rastreamento e controle do fluxo de armas e munições, na asfixia financeira das redes do crime organizado e na ampliação das investigações sobre toda a cadeia econômica, política e institucional que sustenta essas organizações, indo muito além das facções e alcançando seus vínculos com agentes públicos, empresas, milícias e grupos econômicos beneficiados pela economia da guerra;
A suspensão imediata de operações letais nas favelas e periferias do Rio de Janeiro;
A presença de observadores internacionais e nacionais da ONU, da OEA e de organizações de direitos humanos para acompanhar as investigações e assegurar transparência;
Independência das perícias, garantindo participação de peritos da Defensoria Pública e observadores independentes de órgãos internacionais;
Reparação integral às famílias das vítimas, com reconhecimento público da responsabilidade do Estado e medidas efetivas de não repetição;
A elaboração de políticas de atenção, cuidado e acesso à justiça para as vítimas da violência do estado e medidas para reparação comunitária, cujo os recursos orçamentários devem ser tirados do Fundo de Direitos Difusos e Coletivos do Ministério da Justiça e Segurança Pública, que deve ser descontingenciado para atender a demanda das comunidades atingidas, incluindo auxílio para translado de corpos para outros estados;
A construção de Protocolo sobre o funcionamento contínuo das câmeras nas fardas policiais.
Chega de massacre! Extermínio não é segurança pública!
Pela vida do povo negro e pobre desse país, contra o genocídio!
