28 de setembro é um importante marco na agenda feminista: Dia Latino-Americano e Caribenho de Luta pela Descriminalização do Aborto. Criado em São Domingo, em 1992, durante o 1º encontro de mulheres Negras Latino-americanas e Caribenhas, os efeitos dessa articulação internacional de mulheres negras seguem ganhando força nos movimentos políticos e em novos ecos nas ruas ao reivindicarmos a autonomia dos nossos corpos e o fim da violência racista e patriarcal sobre nós, mulheres, pessoas que gestam e crianças.
Lutamos coletivamente, cada vez mais organizadas e diversas. Nossas pautas históricas em defesa do reconhecimento legal direitos sexuais e reprodutivos e pela livre escolha pela interrupção da gravidez seguem na linha de frente da construção de um calendário feminista de lutas inegociáveis para a vida das mulheres e pessoas que gestam. O debate sobre saúde reprodutiva da mulher e legalização do aborto não pode continuar na esteira do moralismo, tampouco, distorcido pelos discursos do fundamentalismo religioso que defende a ilegalidade da prática do aborto e o encarceramento como "solução" para uma demanda que deveria estar na pasta de saúde pública do governo federal. Contrariando as premissas do sentido de Estado Laico, a política institucional moderna-colonialista - marcadamente misógina, racista, lgbtfóbica - é omissa e negligente diante das vidas de mulheres e demais pessoas que gestam, que perdem suas vidas em tentativas de abortos clandestinos.
Estamos em 2023 e os números sobre a prática do aborto clandestino no Brasil dizem muito sobre a urgência das nossas demandas: segundo os resultados da extensa e robusta Pesquisa Nacional do Aborto – 2016, 2019 e 2021 - a PNA, no Brasil, mais de meio milhão (500.000) de pessoas abortam por ano. São muitas pessoas que, diante de todos os riscos, decidiram pela realização da interrupção da gravidez. Ou seja, proibir a prática do aborto não as impede de decidir por fazê-lo; as coloca em desamparo, isolamento em condições críticas de vida. A mesma pesquisa revela que uma a cada sete mulheres terá feito aborto até os 40 anos. Uma a cada três mulheres, fará aborto por repetição e já possuem família constituída. A maioria dos casos encontra no perfil da mulher negra e periférica o corpo que mais morre diante do proibicionismo que se perpetua no país. Além disso, para desespero da bancada fundamentalista do Congresso Nacional,que opera incessantemente pela invisibilização do feminismo nas disputas políticas, 25% das mulheres que já abortaram são evangélicas e 56% delas são católicas. Em suma, esses dados estatísticos nos revelam pessoas destituídas da liberdade de decidir sobre sua vida, seu corpo. Pessoas que constituem uma família; que vivem em múltiplas esferas de sociabilidade. São mulheres, pessoas jovens, adultas, mães, trabalhadoras que constituem, não um caso isolado, um fenômeno social e histórico. Ainda assim, mesmo diante de estudos robustos, permanece tratado como um dos tabus mais duros de serem encarados numa sociedade que trata de forma profundamente conservadora e até, reacionária, assuntos que dizem respeito à igualdade de gênero, à liberdade sexual e reprodutiva da mulher.
Criminalizar o aborto é uma poderosa estratégia de manutenção da precarização e da vulnerabilidade estrutural da vida das mulheres. Além disso, contribui para o desmantelamento do planejamento familiar, sobretudo, das mulheres negras e periféricas justamente porque relega a essa combinação sócio-cultural de gênero-classe-raça, respostas punitivistas e estigmas sociais que diminuem sua qualidade de vida. Além disso, contribui diretamente para o aumento do número de mortes das mulheres e pessoas que gestam ao decidirem enfrentar o aborto inseguro. Se o lugar do aborto é o direito penal, não há responsabilidade do Estado em investir políticas de educação sexual, prevenção reprodutiva acessível e universal, saúde e acolhimento às mulheres, para inclusive, evitar futuros procedimentos abortivos. As evidências científicas que relacionam a legalização do aborto com a diminuição dessa prática são amplas e experimentadas em países que têm optado pela legalização. Fato é que precisamos admitir que o aborto não irá desaparecer se permanecer na ilegalidade. Nesse sentido, permanecermos nessa condição significar afirmar que apenas mulheres ricas terão a chance de realizar o aborto de forma segura sem nenhuma penalizade, sem riscos ou julgamentos morais. Precisamos nos perguntar a quem interessa esse tipo de desigualdade, de autoritarismo classista alimentado exclusivamente por desinformação, pânico moral e machismo. Quem se beneficia com a lógica do medo e da insegurança de mulheres que têm sua dignidade e saúde desconfiguradas se ousarem exercer seu poder de decisão sobre sua própria vida reprodutiva?
Defendemos que nós, mulheres e pessoas que gestam, possamos viver nossas vidas plenas de autonomia e emancipadas de quaisquer culturas de dominação e exploração. Defendemos o aborto seguro, gratuito e público. É esse tipo de intervenção política que defendemos do ponto de vista constitucional. É esse o compromisso que exigimos que o Estado estabeleça com todas nós, mulheres e todas as pessoas com útero. É esse o diálogo que desejamos ampliar na sociedade civil: nenhuma mulher que realizou aborto é criminosa. Nenhuma criança que foi violentada, que engravidou, deve parir, reforçar traumas e perder o direito ao pleno gozo da infância. É preciso que a sociedade confie na nossa capacidade de realizar decisões responsáveis sobre nossas próprias vidas.
Nem presas. Nem mortas.
Nosso compromisso é com o bem viver.
Na América latina e caribenha, o dia 28 de setembro é feminista! É nas ruas e na luta pela conquista dos nossos direitos!
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