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Capacitismo: reflexões para o início de uma compreensão histórica e estrutural

  • Tomaz Civatti
  • 16 de set.
  • 13 min de leitura

Inicio aqui o que se propõe a ser uma síntese de ideias, compreensões e elaborações a respeito do capacitismo enquanto um sistema de opressão, de uma forma que não me agrada tanto, mas que, para situar essa discussão, é fundamental. A maneira é mencionar de cara uma citação, não que isso me confira um lugar de autoridade sobre o tema, razão pelo qual muitas vezes tal artifício é usado, longe disso – e avalio que, inclusive, falta muita elaboração e sistematização de ideias históricas que foram esquecidas a respeito do tema, sobretudo a partir de uma ótica marxista e das proposições para uma revolução mundial que dê conta de encerrar a história das supremacias. A autora ou, na verdade, o conjunto de pensadoras e lutadoras que irei citar é Julieta Paredes e as feministas comunitárias de Abya Yala, que assinam em conjunto a autoria de um livro fantástico denominado O desafio da despatriarcalização do mundo.


A menção ao livro é fundamental pela sistematização histórica que essas militantes do povo Aymara da Bolívia fazem das relações de simbiose entre os sistemas de supremacia e opressão que surgiram ao longo dessa pré-história humana, como pontuou Marx, em que as sociedades são ditadas pelos sistemas de classes e a luta entre esses segmentos sociais.


Ao contrário do que é muito comum nas nossas diversas correntes e tradições militantes marxistas em que, ao construir o diagrama dos sistemas de dominação e supremacia, situa-se o capitalismo como a camada aglutinadora dos demais, isto é, patriarcado e colonialismo ou imperialismo, as autoras irão premir pelo surgimento histórico desses sistemas e, por isso, colocar o patriarcado, por ser o mais antigo, como organizador da evolução histórica das sociedades e lutas de classe, passando depois ao sistema colonial e, por fim, o capitalismo.


Independentemente de concordância ou não com essa proposição, se permitir ponderar segundo o ângulo deste olhar, nos leva a um mergulho às zonas mais primordiais e basilares do que se desenvolve como o imaginário, a mitologia, a concepção de história e, ao fim, a ideologia que fundamenta o capitalismo tardio tal o conhecemos, um sistema de hierarquização e exploração de segmentos sociais. Nos permite, inclusive, ver toda a história humana até aqui como pertencente a um mesmo ordenado.


Esse movimento de retorno proposto pelas feministas comunitárias, com a atenção voltada à longevidade dos sistemas de opressão, poderia, até mesmo, voltar um tanto a mais, para observar um dado que pode nos interessar muito, para compreender a genealogia do capacitismo. Retornando para ainda antes do patriarcado, e embora o acesso às formas e realidades de organização dos arranjos societários humanos mais antigos nos esteja dificultado pela própria lógica colonial de disposição do passado historiograficamente, é possível situarmos uma condição material objetiva naquele horizonte primitivo, que se coloque como altamente indicioso da instituição da primeira forma de segregação inaugurada dentro de nossa espécie, a supostamente herdada da natureza, “lei do mais forte”, “lei da selva” ou, ainda, a sobrevivência do mais apto – como depois será sistematizado por Darwin para fundacionar sua teoria da evolução e, posteriormente, de maneira conveniente, é empregada pelas nações imperialistas para justificar sua supremacia global com a ideologia eugenista que ficou conhecida como darwinismo social. Sem que consiga de fato assegurar como eram as relações e práticas humanas àquela época, apenas pondero, estar tão imerso nas dinâmicas de competição pela vida sem estar protegido pelas cercas da civilização, poderia implicar aos nossos ancestrais certas formas de valorização do corpo e da mente humanas, em função de sua utilidade para a sobrevivência do grupo ou comunidade – uma hierarquia, então. O que, por outro lado, não justifica o fato de essas formas de valorização terem sido com o tempo cristalizadas, conforme as sociedades se tornavam mais complexas e hierarquizadas – ainda que ao fazê-lo encontrassem, justamente, formas mais criativas de superar a pressão das cadeias alimentares, da predação e de suplantar as demais adversidades apresentadas pelo planeta.


A bem da verdade, essa noção grosseira de aptidão como sinônimo de “o indivíduo mais forte”, traduzida em vantagens genéticas no interior da espécie para uma lógica de seleção do melhor espécime apto para sobrevivência, nunca se mostrou tão crucial a nós quanto a capacidade de criação humana de novas condições materiais ao associar-se em grupos, sociedades e culturas. A ideia de “aptidão” enquanto um critério de pertencimento e valorização social não é um dado natural da nossa espécie, mas uma elaboração que, uma vez consolidada, passou a estruturar as práticas sociais.


A premissa de outorgar importância a um indivíduo diante de suas aptidões e conquistas, de hierarquizar os indivíduos dentro de uma comunidade de acordo com suas capacidades mais operacionais, o desempenho requisitado de seu corpo e sua mente, é, desde os “tempos das cavernas”, aquilo que, com o tempo, irá se desenvolver para o que se tornaria, segundo essa lente analítica das feministas comunitárias, o sistema de opressões cujas bases materiais são as mais antigas, o capacitismo.


A genealogia do capacitismo, entretanto, pode ser melhor compreendida se abrirmos mão da necessidade, por ora, de o ordenar conforme seu grau de imperatividade dentro desse diagrama de relações entre os sistemas de opressão, sendo melhor pensar e admitir sua transversalidade histórica na experiência social humana. Afinal, os discursos e práticas que hierarquizam corpos e mentes conforme parâmetros de eficiência, produtividade e pureza aparecem em momentos-chave da formação do patriarcado, do colonialismo e do capitalismo, muitas vezes servindo de ponte ideológica entre eles, revelando o capacitismo como uma matriz estrutural recorrente, cuja lógica de exclusão se reproduz e se renova em cada regime histórico de dominação.


Tal ideologia, mesmo sem sequer ter mencionado ainda o ponto central aqui que é o conceito de deficiência, permanece profundamente arraigada no capitalismo tardio. Desde o culto ao corpo escultural e os espetáculos dos esportes de alta performance, ao mito da meritocracia e o self-made man, às notas educacionais e demais sistemas de avaliação classificativos, até à adaptabilidade exigida ao contexto social. Ao ponto de ao arquétipo adorado neste tempo histórico, o do bilionário ou burguês, ser intrínseco como características fundantes a origem europeia ou branca, o ser homem e cisheterossexual, mas também a ausência de deficiências ou “pureza genética”, além de seu aspecto soberano e autossuficiente, numa história de vida de conquistas que justifique, com suas aptidões, porque é que figura e reina sobre todos os demais humanos.


É curioso como, entre esse raciocínio e o próprio discurso feito por nossos inimigos, a ideologia dominante se aproxima e se afasta da própria natureza e a pretensa compreensão que se tem de sua lógica. Por um lado, o desenvolvimento tecnológico encaminha-se para um futuro deificante que visará a romper todas as leis naturais, em busca da imortalidade e da longevidade; enquanto, por outro, endossa a mesma relação primitiva em que a genética e as concepções das capacidades humanas mais básicas separam os aptos e os não aptos a usufruir da sociedade prodigiosa que estendem no horizonte futuro – esquecidos de que nenhum primor poderá ultrapassar os limites materiais do próprio planeta.


Para darmos o próximo passo nesse quadro básico de compreensão do capacitismo, será imprescindível remontar à diferenciação entre as concepções do modelo biomédico e o modelo social de deficiência – elaborado e proposto pela Upias (Liga dos Lesados Físicos Contra a Segregação) tida como a primeira organização política de pessoas com deficiência, fundada sob a tradição marxista no Reino Unido. Passando agora à articulação do conceito de modelo social e ao distingui-lo de seu contramodelo biomédico, ficará compreensível todo o porquê da escolha deste trajeto de raciocínio de primeiro estipular a questão dos sistemas de opressão para somente após adentrar no capacitismo, seus propósitos e o motivo pelo qual é possível o situarmos como organizador de opressão, exploração e lutas sociais.


Conforme resgata a pesquisadora Debora Diniz, o objetivo da Upias era:


"questionar essa compreensão tradicional da deficiência: diferentemente das abordagens biomédicas, deficiência não deveria ser entendida como um problema individual, uma “tragédia pessoal”, [...] mas sim como uma questão eminentemente social. A estratégia da Upias era provocativa, pois tirava do indivíduo a responsabilidade pela opressão experimentada pelos deficientes e a transferia para a incapacidade social em prever e incorporar a diversidade".


Não apenas isso, mas o desenrolar da discussão que colocaria no cerne do capacitismo a compreensão do modelo social da deficiência permitiria às organizações políticas elaborar posteriormente a noção de que cada sociedade forjará, para seus intuitos, uma norma do corpo e da mente ideais para perpetuar seu desenvolvimento. Com nosso olhar direcionado ao passado, para as comunidades primitivas, a ideologia capacitista já nos leva a escolher que tipo de pessoa se preferiria como responsável pela sobrevivência do coletivo – imaginário o qual pode, inclusive, ser evidenciado em filmes e livros ficcionais sobre a época – e tal inclinação não só não é superada com o desenvolvimento histórico do ser humano, encerrando a lei do mais apto para fora da sociedade, mas é apropriada e empregada continuamente como forma de estratificação das pessoas.


De fato, essa estrutura será levada à sua máxima aplicação com a evolução do mundo do trabalho sob os ditames do capitalismo industrial. Apesar de, justamente nesse período, também se revelar o mundo de trabalho como um lugar em que se engendra a deficiência, motivo pelo qual ser tão importante à Upias destacar a questão da lesão ou dos lesionados, visto mal haver segurança no trabalho àquela época e o ambiente fabril gerar com frequência lesões físicas nos trabalhadores – o que não quer dizer que tal característica do trabalho industrial tenha sido extinta com o avançar das legislações de proteção ao trabalhador, persistindo assim até os dias de hoje.


Mas, para além disso, a existência prolongada na história humana do capacitismo estará também transversal ao longo do processo de orquestração das divisões de gênero no patriarcado, fundamentando o discurso sexista, além de fazer o mesmo para o projeto colonialista, organizando a ideologia de supremacia racial. O discurso do “sexo frágil” e a subsequente exclusão das mulheres historicamente das mais diversas atividades e espaços sociais encontra-se com o capacitismo nesse lugar da conveniente utilização das aptidões humanas como ferramenta de estratificação para quais seriam os corpos e mentes ideais para ocupar os postos que decidiriam os rumos da humanidade. Da mesma forma, o discurso médico e o religioso se aproveitariam do capacitismo para hierarquizar culturas e povos, muitas vezes apelando para um pseudo-cientificismo que demonstrasse a superioridade genética e evolutiva dos povos brancos e europeus, apontando-os como os escolhidos para conduzir a humanidade.


São as próprias condições materiais dessas sociedades, tal é evidente desde o exemplo das comunidades humanas primitivas, que determinará essa normatividade sobre corpos e mentes. Também fica evidente, fazendo um salto histórico que aproxime a discussão dos tempos atuais, na mudança da economia capitalista quando deixa de ser centralmente industrial para se tornar, em diversos países, uma economia de serviços. Nessa transição, o tipo ideal de trabalhador, seu corpo e sua mente, que precisava ser forte e bom em tarefas repetitivas, na economia industrial, ao passar à era dos serviços, precisa atender a uma nova norma para seguir contribuindo de maneira perceptível à produtividade, fundando a exigência para que trabalhadores fossem muito sociáveis, flexíveis e altamente adaptados.


As condições que são designadas como deficiências – e a própria terminologia é passível de discussão dentro de uma apreciação crítica da ideologia capacitista – são percebidas e organizadas desta forma conforme justamente as condições materiais do sistema de produção e sociabilidade das sociedades. Se, na sociedade industrial e naquelas cujo trabalho dependia unicamente de uma constituição física que aguentasse as tarefas pesadas, é o corpo o principal foco de percepção das deficiências; numa economia de serviços como a do capitalismo tardio, também o neurodesenvolvimento, o psiquismo e a sociabilidade serão alvos de estratificação entre os indivíduos.


O surgimento da Upias e a disseminação do pensamento que fundamenta o modelo social da deficiência serão portanto fundamentais para uma compreensão marxista do capacitismo enquanto um sistema de opressões estruturante e da deficiência como uma construção social e não um fato biológico; movendo o eixo da percepção da deficiência de algo puramente individual, natural e médico, para uma responsabilização da própria forma de se organizar a sociedade. A escritora autista inglesa, Janine Booth, exemplifica com maestria a questão em seu texto Neurodiversidade, capitalismo e socialismo:


"A condição cerebral que agora é chamada de dislexia provavelmente já existe há milhares de anos, mas não se tornou um problema e não foi rotulada de “dislexia” até que a linguagem escrita se espalhasse. Então, a razão pela qual pessoas disléxicas têm um problema ou disfunção não é porque são defeituosas, mas porque a sociedade desenvolveu a linguagem escrita de uma forma que não se encaixa à sua condição cerebral."


Defeituosa ou até deficiente são atribuições que atendem, portanto, muito mais a um modelo médico do que propriamente à visão mais socialista da questão. Para que se compreenda de forma mais precisa a crítica anticapacitista, é necessário reconhecer que a própria noção e nomenclatura de “deficiência” é um produto da normatividade vigente – seja física, cognitiva, emocional ou sensorial. O termo é menos uma descrição objetiva de um corpo ou uma mente e mais uma designação que emerge da relação entre sujeitos e as exigências de um modelo social e econômico específico.


Na língua inglesa, inclusive, os movimentos anticapacitistas já elaboraram uma palavra que serve ao propósito que viemos argumentando ao longo deste texto, desability. Pessoas que não atendem à normatividade prescrita pelos sistemas de produção nas sociedades seriam pessoas desabilitadas pela ordem social a usufruir plenamente das condições de vida naquela sociedade. A deficiência não se trata de uma ausência essencial – um fato natural da espécie, uma “tragédia pessoal” – mas de um processo de desabilitação ativa promovida pela sociedade. O que é considerado deficiência em um tempo e lugar pode não ser em outro, como revela o exemplo da dislexia. A deficiência, portanto, deve ser tratada como uma construção histórica e política, cuja definição muda conforme mudam os padrões de normalidade, produtividade e pertencimento.


É sob essa perspectiva que o modelo social da deficiência se torna tão importante, deslocando o foco do corpo para a ordem social que prescreve qual corpo é aceitável. E esse deslocamento precisa ser radicalizado ao ponto de denunciar como a mais ampla gama de discursos – políticos, médicos, culturais, pedagógicos – constroem a presente normalidade como universal. A crítica anticapacitista, portanto, acrescenta novas camadas e tarefas à transformação radical da sociedade ao reconhecer graus não tão novos assim de diversidade entre a população humana, em seus corpos, mentes e maneiras de socializar.


Ainda assim, numa sociedade em que o trabalho se constitui como único meio de acesso a uma parca cidadania às classes despossuídas, é sempre fundamental jogar luz à situação das pessoas com deficiência no mundo do trabalho. Em uma pesquisa do IBGE realizada em 2022, apenas 28% das pessoas com deficiência estavam empregadas, sendo que, destas, apenas 34,3% ocupavam postos de trabalho formais. Entre pessoas autistas os números são ainda mais alarmantes, alcançando a taxa de 85% das pessoas autistas adultas desempregadas.


A interseccionalidade, assim como em outras análises de combate às opressões, se torna fundamental para analisarmos esses dados. Mesmo porque, é necessário que se reconheça que o capacitismo não opera de maneira uniforme entre todas as pessoas com deficiência. As condições materiais de existência – acesso à renda, educação, saúde, redes de cuidado, raça, gênero, identidade e orientação sexual – produzem experiências diferenciadas de exclusão e inclusão parcial. As figuras do “deficiente empreendedor”, do influencer que viraliza sua superação, do funcionário com deficiência escolhido para integrar grandes corporações ou dos que acessam vagas reservadas em concursos públicos são frequentemente exaltadas pela ideologia liberal como uma demonstração da superação das barreiras e da efetividade da meritocracia. No entanto, trata-se da conversão seletiva da deficiência em capital simbólico para a propaganda desses discursos, trajetórias as quais, muitas vezes, são acessadas apenas por uma fração da população com deficiência, geralmente branca, urbana e de classe média.


Para além da estratégia básica do capitalismo de constituição de um exército de reserva, noção basilar entre marxistas ao apontar o caráter estruturante das opressões na sociedade, tal evidência é um reforço enorme à essa noção de desabilitação desses segmentos populacionais. Além de corroborar para um discurso meritocrata e liberal de propaganda do sistema, responsabilização das próprias pessoas e ofertas de saídas individuais. Nesse caso entrará, em duplo fator, uma providência social imprescindível ao sistema para continuar mantendo a propaganda de si próprio como a melhor solução para a organização humana. É nesse ponto que a seguridade social é sempre uma moeda de troca publicitária para a indústria cultural capitalista.


Afinal, a cada dia o capitalismo precisa convencer toda uma legião de trabalhadores e oprimidos a continuarem aderindo ao que está proposto como vida social e econômica. Por isso, a institucionalização da exceção é tão efetiva. Até porque, não dá para dizer que as pessoas com deficiência, mulheres, LGBTQIAPN+ e pessoas não-brancas estão completamente excluídas ou alijadas de possibilidades de ascensão social, vejam esse ou aquele caso exemplar. E a respeito do capacitismo, a estrutura meritocrata irá mediar essa constatação através das “adaptações” e, sobretudo, pela privatização das soluções disponíveis para os prejuízos persistentes a que esse segmento se vê afetado. São as inovações biomédicas cirúrgicas ou de próteses, as medicações que aproximarão o funcionamento neurodivergente daquele dos neurotípicos, as vagas reservadas em grandes corporações ou concursos públicos, os descontos para a compra de automóveis, toda uma série de produtos para autorregulação ou diminuição das hipersensibilidades. E nem seria preciso ir tão longe, visto que o acesso à saúde ao nosso segmento, com demandas muito mais complexas e dispendiosas, muitas vezes depende do auxílio médico privado para ser plenamente atendido.


Enquanto na outra ponta, àqueles que permanecem empurrados para a marginalidade e a exclusão, um sem fim de organizações mobilizadas pela lógica da pena, garantirão a propaganda ao sistema de que a seguridade social será mantida de alguma forma, de que os mais “carentes” não serão esquecidos. Enquanto tal política serve de cortina de fumaça para uma série de estratégias de empobrecimento geral da população. É o que se evidencia na cada vez maior adesão dos setores de extrema-direita na pretensa defesa dos interesses das pessoas com deficiência, que os coloca nessa posição de altruístas e simpáticos às maiores dores dos que mais sofrem na sociedade. Algo nem de longe novo, vide todo o benefício que as religiões europeias colheram desta fachada desde a idade média e que fizeram surgir depois as primeiras organizações de caridade, as quais tanto mais endossaram a posição estigmatizada daqueles a quem pretendiam ajudar, do que de fato encamparam alguma mudança sensível. A exemplo a estadunidense Autism Speaks, que popularizou a simbologia do quebra-cabeça relacionado às pessoas autistas como aqueles que não se encaixam, reforçando uma visão de “tragédia pessoal” e insistindo pela busca da cura da condição daqueles no espectro, mesmo que sabidamente o autismo não seja uma doença.


A desabilitação sistemática das pessoas com deficiência não é, portanto, apenas um efeito colateral do capitalismo, mas parte integrante de sua lógica de acumulação, organização do trabalho e dominação cultural e simbólica. Superá-la requer mais do que inclusão ou políticas de compensação, exige uma ruptura profunda com a sociedade de classes e com a racionalidade produtivista e normalizadora que a estrutura. Isso, no entanto, não deslegitima as lutas imediatas por direitos e políticas públicas – ao contrário, estas devem ser entendidas como movimentos táticos de um programa de transição anticapacitista e ecossocialista. Tal programa precisa se contrapor frontalmente à caridade liberal e à apropriação conservadora ou neoliberal das pautas da deficiência, oferecendo à classe trabalhadora um horizonte no qual a diversidade de corpos e mentes não seja apenas tolerada, mas reconhecida como expressão legítima da vida. Precisa ser tarefa urgente da esquerda revolucionária e da esquerda em geral para além de abraçar a causa, compreender seu caráter histórico e estruturante de desigualdades. Não apenas isso, mas a exemplo dos acúmulos vindos dos diversos movimentos de combate às opressões, antirracista, feminista e LGBTQIAPN+, toda nova opressão percebida e reivindicada revela novas dimensões de exploração e dominação que a supremacia das classes hegemônicas nos impõe, e revela novos caminhos de elaboração ao marxismo e ao movimento da classe trabalhadora para construir o verdadeiro ecossocialismo, que dê fim à pré-história humana refém das divisões de classes.

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